Coletiva, Espaço 109 Porto Multicultural de Artes e Línguas
8 a 31 de Dezembro
R. de Vale Formoso 109, 4200-511 Porto
Filipe Rodrigues, Meta verso, acrílico sobre tela, 30x24cm 2022
Coletiva, Espaço 109 Porto Multicultural de Artes e Línguas
8 a 31 de Dezembro
R. de Vale Formoso 109, 4200-511 Porto
Filipe Rodrigues, Meta verso, acrílico sobre tela, 30x24cm 2022
19 Novembro a 31 Dezembro 2022
Curador: Humberto Nelson
Título: Imprevisível
Artista: Filipe Rodrigues
Texto: Domingos Loureiro (Professor de
Pintura FBAUP / Investigador i2ADS)
A narrativa da subjetividade
A primeira vez que vi uma imagem impressa da
obra Ceci
n’est pas une pipe
de Magritte, fiquei algo incomodado com a forma como aquela simples imagem me
provocava. Primeiro questionei o modo como foi realizada; a forma como o texto
estava colocado sobre a imagem; a afirmação de uma negação; e por fim, porque
era aquela uma das principais obras-primas do Surrealismo? A curiosidade nunca
foi saciada e, embora as respostas sejam hoje outras, é certo que também
aumentaram as questões.
Quando olhamos, vemos apenas aquilo que
sabemos existir, aquilo que conhecemos. Não vemos o que não conhecemos, ou,
como escrevera Saramago, ‘só se vê a ilha, quando se sai da ilha’. Precisamos
de conhecer e de sair de nós próprios para entrarmos no espaço entre as coisas.
A obra de Magritte sempre me intrigou pois nunca a consegui enquadrar com
qualquer determinismo que fosse capaz de a fechar e resolver a intriga em que
me lançou. Nem mesmo quando me encontrei perante o original em que se percebem
as finas pinceladas deixadas pelo artista na execução da imagem das letras
(sim, porque além de texto, é imagem). Nem tampouco o conhecimento da
anti-narrativa surrealista me explicou o que ali decorria. Distanciar-me,
conhecer mais, ver de fora, não serviram para resolver, antes adensar o esforço
desafiante que aquele pedaço de tela pintada em poucos dias, me provocou.
Compreendo a potência da impossibilidade de
fechar uma obra, de a tornar tão esquiva que nenhum conformismo a poderia
encerrar. O espaço em aberto, mesmo a mais pequena brecha, é uma porta que nos
consome para a dúvida, para a subjetividade. O resultado incerto onde a
imaginação nos leva, perante enigmas sem resposta, é absolutamente fascinante,
convocando e reinventando novas abordagens, novas considerações, novas provocações.
Sei que, se não soubesse falar francês, talvez já tivesse resolvido o enigma
lançado pelo artista belga, e até achasse que aquela imagem impressa, não fosse
mais do que uma imagem de um produto a ser publicitado que, certamente não iria
comprar porque tampouco sou fumador… Infelizmente percebo francês, e mesmo não
sendo fumador, aquela imagem é capaz de me consumir. Percebo hoje, talvez mais
do que no passado, o papel concreto da subjetividade na arte. Ela é
intrinsecamente mais potente do que qualquer mensagem ou conteúdo, pois consome
lentamente, durante mais tempo do que o tempo que dedicamos às coisas
concretas. A subjetividade é uma das mais ferozes armas que os artistas
utilizam para tornar a arte tão aliciante, fabulosa, mas também corrosiva. É pelo
subjetivo que somos impelidos a entrar no jogo sem resposta da Arte, porque ela
parece ter as respostas para aquilo que desconhecemos, mesmo sem nos prometer
qualquer resposta. Por causa de Magritte, pela sua capacidade de produzir
enigmas em aparências simples, chegamos a outro artista belga, Luc Tuymans, que
tão caro é para Filipe Rodrigues. Tuymans convoca-nos para imagens pintadas de
forma pouco meticulosa e com cenas quase despropositadas, como uma sala vazia
ou uma silhueta. Tuymans ludibria-nos com a ligeireza com que as coisas parecem
ter sido realizadas, num esforço quase anti-emocional onde pintura, autor e
imagem se dissolvem. Em 2002, pouco depois do ataque às Torres Gémeas do 11 de
setembro, Tuymans realiza uma enorme pintura de 300x500cm com uma
natureza-morta em tons de cinza, para uma exposição direcionada às dimensões
políticas que tanto estavam presentes no quotidiano. A reação do público foi de
estranheza, quando todos esperavam que as torres em chamas fosse a imagem
selecionada, em vez de uma qualquer Still Life (natureza-morta, em
inglês) banal. Como em Magritte, a obra não se fechou, pois, neste caso, todos
conhecíamos as imagens dos ataques em Nova Iorque, e ninguém conseguiu deixar
de as ver projetadas nesta obra-prima da pintura. Tuymans, como Magritte, tinha
preparado a armadilha e o público acionou-a. Percebo, por isso, como a
subjetividade é uma ferramenta de destruição do concreto, mas simultaneamente
de edificação, como matéria que se esvai por entre os dedos, mas que também se
pode fixar entre as ideias e no território incompreensível vivenciado pela
nossa imaginação.
Sei hoje muito mais sobre esta ferramenta
poderosa, em que a subjetividade se torna narrativa, porque tive o prazer de
acompanhar o desenvolvimento de algumas destas obras ao longo dos últimos anos,
em diálogo com o Filipe Rodrigues, sabendo como evoluem estas definições, e
vendo-as ocorrer nas suas pinturas. Sei hoje que a Arte é matéria profunda para
a ação da subjetividade, onde as imagens, os gestos, as cores, as matérias, se
revestem da pólvora utilizada em cada combate, quer do pintor perante as suas
dúvidas e certezas, quer do espectador perante as produções que dali emergiram.
Filipe Rodrigues é a forma desta consciência
do poder da subjetividade, onde cada pintura afirma o seu empenho para cumprir
com o ofício de entrar na luta com o desconhecido, em territórios de múltiplas
narrativas e simultâneas ações.
A subjetividade pode não nos dar respostas
apaziguadoras, mas talvez, não sejam respostas aquilo que os artistas, e em
particular Filipe Rodrigues, procuram. Magritte, Tuymans, Rodrigues, pretendem,
talvez, participar de um jogo em que o concreto se esvai a cada novo elemento,
na busca de um equilíbrio absolutamente fascinante, em que edificação e destruição
estão separados pelo fio da navalha onde os artistas se sustentam. Na condição
de espectador, somos desafiados a entrar no seu jogo, sendo certo, que vai ser
muito difícil encontrar o chão que por vezes achamos ter por baixo dos nossos
pés.
Obrigado Filipe Rodrigues por provocares a
minha imaginação e me transportares no território doloroso e fabuloso da
subjetividade, que agora, mais do que nunca, tenho interesse em buscar.
Agradeço-te Filipe por me teres desafiado para este território tão transcendental
e que tanto nos revela sobre nós próprios.
Domingos Loureiro
Professor de Pintura FBAUP
Investigador i2ADS